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Project Gutenberg's Memorias Postumas de Braz Cubas, by Machado de Assis
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AO LEITOR
Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havel-o
escripto para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não
admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver
os cem leitores de Stendhal, nem cincoenta, nem vinte, e quando muito,
dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra diffusa,
na qual eu, Braz Cubas, se adoptei a fórma livre de um Sterne, de
um Lamb, ou de um de Maistre, não sei se lhe metti algumas rabugens
de pessimismo. Póde ser. Obra de finado. Escrevi-a com a penna da
galhofa e a tinta da melancholia; e não é difficil antever o que poderá
sair desse connubio. Accresce que a gente grave achará no livro umas
apparencias de puro romance, ao passo que a gente frivola não achará
nelle o seu romance usual; e eil-o ahi fica privado da estima dos
graves e do amor dos frivolos, que são as duas columnas maximas da
opinião.
Mas eu ainda espero angariar as sympatias da opinião, e o meio efficaz
para isso é fugir a um prologo explicito e longo. O melhor prologo
é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um geito obscuro e
truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinario que
empreguei na composição destas _Memórias_, trabalhadas cá no outro
seculo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessario ao
entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino
leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote,
e adeus.
BRAZ CUBAS.
AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADAVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTHUMAS
CAPITULO I
Obito do autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memorias pelo principio ou
pelo fim, isto é, se poria em primeiro logar o meu nascimento ou a
minha morte. Supposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas
considerações me levaram a adoptar differente methodo: a primeira é que
eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para
quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escripto ficaria assim
mais galante e mais novo. Moysés, que tambem contou a sua morte, não a
poz no introito, mas no cabo: differença radical entre este livro e o
Pentateuco.
Dito isto, expirei ás duas horas da tarde de uma sexta feira do mez de
agosto de 1869, na minha bella chacara de Catumby. Tinha uns sessenta
e quatro annos, rijos e prosperos, era solteiro, possuia cerca de
tresentos contos e fui acompanhado ao cemiterio por onze amigos.
Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem annuncios. Accresce
que chovia--peneirava--uma chuvinha miuda, triste e constante, tão
constante e tão triste, que levou um daquelles fieis da ultima hora
a intercalar esta engenhosa idéa no discurso que proferiu á beira de
minha cova:--«Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer
commigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparavel de
um dos mais bellos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar
sombrio, estas gotas do ceu, aquellas nuvens escuras que cobrem o
azul como um crepe funereo, tudo isso é a dor crua e má que lhe róe á
natureza as mais intimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao
nosso illustre finado.»
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apolices que lhe
deixei. E foi assim que cheguei á clausula dos meus dias; foi assim que
me encaminhei para o _undiscovered country_ de Hamlet, sem as ancias
nem as duvidas do moço principe, mas pausado e tropego, como quem se
retira tarde do expectaculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove
ou dez pessoas, entre ellas tres senhoras,--minha irmã Sabina, casada
com o Cotrim,--a filha, um lyrio do valle,--e... Tenham paciência!
daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de
saber que essa anonyma, ainda que não parenta, padeceu mais do que as
parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo
que se deixasse rolar pelo chão, epileptica. Nem o meu óbito era cousa
altamente dramatica... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro
annos, não parece que reuna em si todos os elementos de uma tragedia. E
dado que sim, o que menos convinha a essa anonyma era apparental-o. De
pé, á cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a
triste senhora mal podia crêr na minha extincção.
--Morto! morto! dizia comsigo.
E a imaginação della, como as cegonhas que um illustre viajante viu
desferirem o vôo desde o Illysso ás ribas africanas, sem embargo das
ruinas e dos tempos,--a imaginação dessa senhora tambem voou por
sobre os destroços presentes até ás ribas de uma Africa juvenil...
Deixal-a ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos
primeiros annos. Agora, quero morrer tranquillamente, methodicamente,
ouvindo os soluços das damas, as fallas baixas dos homens, a chuva que
tamborila nas folhas de tinhorão da chacara, e o som estridulo de uma
navalha que um amolador está afiando lá fóra, á porta de um correeiro.
Juro-lhes que essa orchestra da morte foi muito menos triste do que
podia parecer; e de certo ponto em deante chegou a ser deliciosa.
A vida estrebuchava-me no peito, com uns impetos de vaga marinha,
esvaia-se-me a consciencia, eu descia á immobilidade physica e moral,
e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do
que uma idéa grandiosa e util, a causa da minha morte, é possivel que o
leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe summariamente o
caso. Julgue-o por si mesmo.
CAPITULO II
O emplasto
Com effeito, um dia de manhã, estando a passear na chacara,
pendurou-se-me uma idéa no trapezio que eu tinha no cerebro. Uma vez
pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas
cabriolas de volantim, que é possivel crer. Eu deixei-me estar a
contemplal-a. Subito, deu um grande salto, estendeu os braços e as
pernas, até tomar a fórma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa idéa era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um
emplasto anti-hypocondriaco, destinado a alliviar a nossa melancholica
humanidade. Na petição de privilegio que então redigi, chamei a
attenção do governo para esse resultado, verdadeiramente christão.
Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniarias que deviam
resultar da distribuição de um producto de tamanhos e tão profundos
effeitos, Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso
confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver
impressas nos jornaes, mostradores, folhetos, esquinas, e emfim nas
caixinhas do remedio, estas tres palavras: _emplasto Braz Cubas._ Para
que negal-o? Eu tinha a paixão do arruido, do cartaz, do foguete de
lagrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio porém que esse
talento me hão de reconhecer os habeis; e eu era habil. Assim, a minha
idéa trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o publico,
outra para mim. De um lado, philanthropia e lucro; de outro lado, sêde
de nomeada. Digamos:--amor da gloria.
Um tio meu, conego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da
gloria temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a gloria
eterna. Ao que retorquia outro tio, official de um dos antigos terços
de infantaria, que o amor da gloria era a cousa mais verdadeiramente
humana que ha no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuina feição.
Decida o leitor entre o militar e o conego; eu volto ao emplasto.
CAPITULO III
Genealogia
Mas, já que fallei nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto
esboço genealogico.
O fundador da minha familia foi um certo Damião Cubas, que floreceu
na primeira metade do seculo XVIII. Era tanoeiro de officio, natural
do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penuria e na obscuridade,
se sómente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador, plantou,
colheu, permutou o seu producto por boas e honradas patacas, até que
morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luiz Cubas.
Neste rapaz é que verdadeiramente começa a serie de meus avós--dos
avós que a minha familia sempre confessou--, porque o Damião Cubas era
afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o
Luiz Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos
particulares do vice-rei conde da Cunha.
Como este appellido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria,
allegava meu pae, bisneto do Damião, que o dito appellido fôra dado a
um cavalleiro, heroe nas jornadas da Africa, em premio da façanha que
praticou, arrebatando tresentas cubas aos mouros. Meu pae era homem de
imaginação; escapou á tanoaria nas azas de um _calembour._ Era um bom
caracter meu pae, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns
fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva
notar que elle não recorreu á inventiva, senão depois de experimentar
a falsificação; primeiramente, entroncou-se na familia daquelle meu
famoso homonymo, o capitão-mór Braz Cubas, que fundou a villa de S.
Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de
Braz. Oppoz-se-lhe porém a familia do capitão-mór; e foi então que elle
imaginou as tresentas cubas mouriscas.
Vivem ainda alguns membros de minha familia, minha sobrinha Venancia,
por exemplo, o lyrio do valle, que é a flor das damas do seu tempo;
vive o pae, o Cotrim, um sujeito que... Mas não anticipemos os
successos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.
CAPITULO IV
A idéa fixa
A minha idéa, depois de tantas cabriolas, constituira-se idéa fixa.
Deus te livre, leitor, de uma idéa fixa; antes um argueiro, antes uma
trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéa fixa da unidade italiana que o
matou. Verdade é que o Bismark não morreu; mas, cumpre advertir que
a natureza é uma grande caprichosa e a historia uma eterna loureira.
Por exemplo, o Suetonio deu-nos um Claudio, que era um verdadeiro
banana,--ou «uma abobora» como lhe chamou Seneca, e um Tito, que
mereceu ser as delicias de Roma. Veiu modernamente um professor e achou
meio de demonstrar que ambos esses conceitos eram erroneos e abstrusos,
e que dos dous cesares, o delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi
o «abobora» de Seneca. E tu, madama Lucrecia, flor dos Borgias, se um
poeta te pintou como a Messalina catholica, appareceu um Gregorovius
incredulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a
lyrio, tambem não ficaste pantano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o
sabio.
Viva pois a historia, a voluvel historia que dá para tudo; e, tornando
á idéa fixa, direi que é ella a que faz os varões fortes e os doudos;
a idéa mobil, vaga ou furta-cor é a que faz os Claudios,--formula
Suetonio.
Era fixa a minha idéa, fixa como... Não me occorre nada que seja assaz
fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pyramides do Egypto, talvez
a finada dieta germanica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe
quadrar, veja-a e não esteja dahi a torcer-me o nariz, só porque ainda
não chegámos á parte narrativa destas memorias. Lá iremos. Creio que
prefere a anecdota á reflexão, como os outros leitores, seus confrades,
e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que
este livro é escripto com pachorra, com a pachorra de um homem já
desaffrontado da brevidade do seculo, obra supinamente philosophica, de
uma philosophia desegual, agora austera, logo brincalhona, cousa que
não edifica nem destróe, não inflamma nem regéla, e é todavia mais do
que passatempo e menos do que apostolado.
Vamos lá; rectifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a
historia com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou
a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão do Augsburgo; pela
minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela idéa de que
Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto
aos inglezes o emplasto Braz Cubas. Não se riam dessa victoria commum
da pharmacia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira
grande, publica, ostensiva, ha muitas vezes varias outras bandeiras
modestamente particulares, que se hasteam e fluctuam á sombra daquella,
com ella cahem, e não poucas vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, é
como a arraia-miuda, que se acolhia á sombra do castello-feudal; cahiu
este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castellã... Não, a
comparação não presta.
CAPITULO V
Em que apparece a orelha de uma senhora
Vae se não quando, estando eu occupado em preparar e apurar a minha
invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me
tratei. Tinha o emplasto no cerebro; trazia commigo a idéa fixa dos
doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e
remontar ao ceu, como uma aguia immortal; e não é deante de tão excelso
expectaculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia
estava peor; tratei-me emfim, mas incompletamente, sem methodo, nem
cuidado, nem persistencia; tal foi a origem do mal que me trouxe á
eternidade. Sabem ja que morri n'uma sexta feira, dia aziago, e creio
haver provado que foi a minha invenção que me matou. Ha demonstrações
menos lúcidas e não menos triumphantes.
Não era impossivel, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um
seculo, e a figurar nas folhas publicas, entre macrobios. Tinha saude
e robustez. Supponha-se que, em vez de estar lançando os alicerces de
uma invenção pharmaceutica, tratava de colligir os elementos de uma
instituição politica, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente
do ar, que vence, em efficacia, o calculo humano, e lá se ia tudo. Um
sopro de ar foi portanto o meu grão de arêa de Cromwell. Assim corre a
sorte dos homens.
Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas
com certeza mais formosa entre as contemporaneas suas, a anonyma do
primeiro capitulo, a tal, cuja imaginação á semelhança das cegonhas do
Illysso... Tinha então 54 annos, era uma ruina, uma imponente ruina.
Imagine o leitor que nos amámos, ella e eu, muitos annos antes, e que
um dia, já enfermo, vejo-a assomar á porta da alcova...
CAPITULO VI
Chimène, qui l'eut dit?--Rodrigue, qui l'eut cru?
Vejo-a assomar á porta da alcova, pallida, commovida, trajada de preto,
e alli ficar durante uns dez segundos, sem animo de entrar, ou detida
pela presença de um homem que estava commigo. Da cama, onde jazia,
contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de
fazer nenhum gesto. Havia já dous annos que nos não viamos; e eu via-a
agora não qual era, mas qual fora**, quaes foramos ambos, porque um
Ezechias mysterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou
o sol, sacudi todas as miserias; e este punhado de pó, que a morte
ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que tempo, que é o
ministro da morte. Nenhuma agua de Juventa egualaria alli a simples
saudade.
Cream-me, o menos mau é recordar; ninguem se fie da felicidade
presente; ha nella uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado
o espasmo, então sim, então talvez se póde gozar deveras, porque entre
uma e outra dessas duas illusões, melhor é a que se gosta, sem doer.
Não durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente
expelliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste
livro, a minha theoria das edições humanas. O que por agora importa
saber é que Virgilia--chamava-se Virgilia--entrou na alcova, firme,
com a gravidade que lhe davam as roupas e os annos, e veiu até o meu
leito. O extranho levantou-se e sahiu. Era um sujeito, que me visitava
todos os dias para fallar do cambio, da colonisação e da necessidade de
desenvolver a viação ferrea; nada mais interessante para um moribundo.
Saiu; Virgilia deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a
olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dous
grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia alli,
vinte annos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela
vida e saciados della, não sei se em egual dóse, mas emfim saciados.
Virgilia tinha agora a belleza da velhice, um ar austero e maternal;
estava menos magra do que quando a vi, pela ultima vez, n'uma festa
de S. João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora
começavam os cabellos escuros a intercalar-se de alguns fios de prata.
--Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu.--Ora, defuntos! respondeu
Virgilia com um muxoxo. E depois de me apertar as mãos:--Ando a ver se
ponho os vadios para a rua.
Não tinha a caricia lacrymosa de outro tempo; mas a voz era amiga e
doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro;
podiamos fallar um ao outro, sem perigo. Virgilia deu-me longas
noticias de fóra, narrando-as com graça, com um certo travo de má
lingua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia
um prazer satanico em mofar delle, em persuadir-me que não deixava nada.
--Que idéas essas! interrompeu-me Virgilia um tanto zangada. Olhe que
eu não volto mais. Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta estarmos
vivos.
E vendo o relogio:
--Jesus! são tres horas. Vou-me embora.
--Já?
--Já; virei amanhã ou depois.
--Não sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não
tem senhoras...
--Sua mana?
--Ha de vir cá passar uns dias, mas não póde ser antes de sabbado.
Virgilia reflectiu um instante, levantou os hombros e disse com
gravidade:
--Estou velha! Ninguem mais repara em mim. Mas, para cortar duvidas,
virei com o Nhonhô.
Nhonhô era um bacharel, unico filho de seu casamento, que, na edade
de cinco annos, fôra complice inconsciente de nossos amores. Vieram
juntos, dous dias depois; e confesso que, ao vel-os alli, na minha
alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permittiu corresponder
logo ás palavras affaveis do rapaz. Virgilia adivinhou-mo e disse ao
filho:
--Nhonhô, não repares nosso grande manhoso que ahi está; não quer
fallar para fazer crer que está á morte.
Sorriu o filho; eu creio quo tambem sorri; e tudo acabou em pura
galhofa. Virgilia estava serena e risonha, tinha o aspecto das
vidas immaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse
denunciar nada; uma egualdade de palavra e de espirito, uma dominação
sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocassemos,
casualmente, n'uns amores illegitimos, meio secretos, meio divulgados,
vi-a fallar com desdem e um pouco de indignação da mulher de que se
tratava, aliás sua amiga; e o filho sentia-se satisfeito, ouvindo
aquella palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam
de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião...
Era o meu delirio que começava.
CAPITULO VII
O delirio
Que me conste, ainda ninguem relatou o seu proprio delirio; faço-o eu,
e a sciencia m'o agradecerá. Se o leitor não é dado á contemplação
destes phenomenos mentaes, póde saltar o capitulo; vá direito á
narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é
interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a
trinta minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinez, bojudo, destro,
escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e
confeitos: caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me transformado na _Summa Theologica_ de S. Thomaz,
impressa n'um volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e
estampas; idéa esta que me deu ao corpo a mais completa immobilidade;
e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro,
e cruzando-as eu sobre o ventre, alguem as descruzava (Virgilia de
certo), porque a attitude lhe dava a imagem de um defunto.
Ultimamente, restituido á fórma humana, vi chegar um hippopotamo, que
me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança,
mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que
me atrevi a interrogal-o, e com alguma arte lhe disse que a viagem me
parecia sem destino.
--Engana-se, replicou o animal, nós vamos á origem dos seculos.
Insinuei que deveria ser muitissimo longe; mas o hippopotamo não me
entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas cousas; e,
perguntando-lhe, visto que elle fallava, se era descendente do cavallo
de Achilles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a
estes dous quadrupedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os
olhos e deixei-me ir á ventura. Já agora não se me dá de confessar que
sentia umas taes ou quaes cocegas de curiosidade, por saber onde ficava
a origem dos seculos, se era tão mysteriosa como a origem do Nilo, e
sobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consummação dos
mesmos seculos; tudo isto reflexões de um cerebro enfermo. Como ia de
olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio
augmentava com a jornada, e que chegou uma occasião em que me pareceu
entrar na região dos gelos eternos. Com effeito, abri os olhos e vi que
o meu animal galopava n'uma planicie branca de neve, com uma ou outra
montanha de neve, vegetação de neve, e varios animaes grandes e de
neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei fallar, mas
apenas pude grunhir esta pergunta anciosa:
--Onde estamos?
--Já passámos o Eden.
--Bem; paremos na tenda de Abrahão.
--Mas se nós caminhamos para traz! redarguiu motejando a minha
cavalgadura.
Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e
extravagante, o frio incommodo, a conducção violenta, e o resultado
impalpavel. E depois--cogitações de enfermo--dado que chegassemos ao
fim indicado, não era impossivel que os seculos, irritados com lhes
devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão
seculares como elles. Em quanto assim pensava, iamos devorando caminho,
e a planicie voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e
pude olhar mais tranquillamente em torno de mim. Olhar sómente; nada
vi, além da immensa brancura da neve, que desta vez invadira o proprio
ceu*, até alli azul. Talvez, a espaços, me apparecia uma ou outra
planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O
silencio daquella região era egual ao do sepulchro: dissera-se que a
vida das cousas ficára estupida deante do homem.
Cahiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto immenso,
uma figura de mulher me appareceu então, fitando-me uns olhos
rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das fórmas
selvaticas, e tudo escapava á comprehensão do olhar humano, porque os
contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita voz
diaphano. Estupefacto, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um
grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e
como se chamava; curiosidade de delirio.
--Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta ultima palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A
figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o effeito de
um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das
cousas externas.
--Não te assustes, disse ella, minha inimizade não mata; é sobretudo
pela vida que se affirma. Vives: não quero outro flagello.
--Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para
certificar-me da existencia.
--Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu
orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dôr e o vinho
da miseria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua
consciência rehouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres
viver.
Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabellos e
levantou-me ao ar, como se fôra uma simples pluma. Só então pude
ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma
contorsão violenta, nenhuma expressão de odio ou ferocidade; a feição
unica, geral, completa, era a da impassibilidade egoista, a da eterna
surdez, a da vontade immovel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas
no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um
ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o
mais debil e descrepito dos seres.
--Entendeste-me? disse ella, no fim de algum tempo de mutua
contemplação.
--Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma
fabula. Estou sonhando, de certo, ou, se é verdade que enlouqueci, tu
não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã, que a
razão ausente não póde reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que
eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagello, nem,
como tu, traz esse rosto indifferente, como o sepulchro. E porque
Pandora?
--Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a
esperança, consolação dos homens. Tremes?
--Sim; o teu olhar fascina-me.
--Creio; eu não sou somente a vida; sou tambem a morte, e tu estás
prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a
voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra echoou, como um trovão, naquelle immenso valle,
afigurou-se-me que era o ultimo som que chegava a meus ouvidos;
pareceu-me sentir a decomposição subita de mim mesmo. Então, encarei-a
com olhos supplices, e pedi mais alguns annos.
--Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes
de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do
expectaculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei
menos torpe ou menos afflictivo: o alvor do dia, a melancholia da
tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o somno, emfim, o
maior beneficio das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
--Viver somente, não te peço mais nada. Quem me poz no coração este
amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, porque te has de golpear
a ti mesma, matando-me?
--Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa,
mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, suppõe trazer
em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o
tempo subsiste. Egoismo, dizes tu? Sim, egoismo, não tenho outra lei.
Egoismo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocinio da
onça é que ella deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o
estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos
a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe,
atravez de um nevoeiro, uma cousa unica. Imagina tu, leitor, uma
reducção dos seculos, e um desfilar de todos elles, as raças todas,
todas as paixões, o tumulto dos imperios, a guerra dos appetites e
dos odios, a destruição reciproca dos seres e das cousas. Tal era
o expectaculo, acerbo e curioso expectaculo. A historia do homem
e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem
a imaginação nem a sciencia, porque a sciencia é mais lenta e a
imaginação mais vaga, emquanto que o que eu alli via era a condensação
viva de todos os tempos. Para descrevel-a seria preciso fixar o
relampago. Os seculos desfilavam n'um turbilhão, e, não obstante,
porque os olhos do delirio são outros, eu via tudo o que passava diante
de mim,--flagellos e delicias,--desde essa cousa que se chama gloria
até essa outra que se chama miseria, e via o amor multiplicando a
miseria, e via a miseria aggravando a debilidade. Ahi vinham a cobiça
que devora, a colera que inflamma, a inveja que baba, e a enxada e a
penna, humidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancholia,
a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até
destruil-o, como um farrapo. Eram as formas varias de um mal, que ora
mordia a viscera, ora mordia o pensamento, e passeiava eternamente as
suas vestes de arlequim, em derredor da especie humana. A dor cedia
alguma vez, mas cedia á indifferença, que era um somno sem sonhos,
ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagellado e
rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atraz de uma figura
nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpavel, outro
de improvavel, outro de invisivel, cosidos todos a ponto precario,
com a agulha da imaginação; e essa figura,--nada menos que a chimera
da felicidade,--ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar
pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ella ria, como um
escarneo, e sumia-se, como uma illusão.
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angustia,
que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por
que lei de transtorno cerebral, fui eu que me puz a rir,--de um riso
descompassado e idiota.
--Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena,--talvez
monotona--mas vale a pena. Quando Job amaldiçoava o dia em que fôra
concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espectáculo.
Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida, mas
digere-me.
A resposta foi compellir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os
seculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações
que se superpunham ás gerações, umas tristes, como os Hebreus do
captiveiro, outras alegres, como os devassos de Commodo, e todas
ellas pontuaes na sepultura. Quiz fugir, mas uma força mysteriosa me
retinha os pés; então disse commigo:--«Bem, os seculos vão passando,
chegará o meu, e passará tambem, até o ultimo, que me dará a decifração
da eternidade.» E fixei os olhos, e continuei a ver as edades, que
vinham chegando e passando, já então tranquillo e resoluto, não sei
até se alegre. Talvez alegre. Cada seculo trazia a sua porção de
sombra e de luz, de apathia e de combate, de verdade e de erro, e o
seu cortejo de systemas, de idéas novas, de novas illusões; em cada
um delles rebentavam as verduras de uma primavera, e amarelleciam
depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma
regularidade de calendario, fazia-se a historia e a civilisação, e o
homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construia o tugurio e
o palacio, a rude aldêa e Thebas de cem portas, creava a sciencia,
que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecanico,
philosopho, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia
á esphera das nuvens, collaborando assim na obra mysteriosa, com que
entretinha a necessidade da vida e a melancholia do desamparo. Meu
olhar, enfarado e distrahido*, viu emfim chegar o seculo presente, e
atraz delle os futuros. Aquelle vinha agil, destro, vibrante, cheio
de si, um pouco diffuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miseravel
como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a
mesma rapidez e egual monotonia. Redobrei de attenção; fitei a vista;
ia emfim ver o ultimo,--o ultimo!; mas então já a rapidez da marcha
era tal, que escapava a toda a comprehensão; ao pé della o relampago
seria um seculo. Talvez por isso entraram os objectos a trocarem-se;
uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um
nevoeiro cobriu tudo,--menos o hippopotamo que alli me trouxera, e que
aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho
de um gato. Era effectivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato
_Sultão_, que brincava á porta da alcova, com uma bola de papel...
CAPITULO VIII
Razão contra Sandice
Já o leitor comprehendeu que era a Razão que voltava á casa, e
convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de
Tartufo:
La maison est á moi, c'est á vous d'en sortir.
Mas é sestro antigo da Sandice criar amor ás casas alheias, de modo
que, apenas senhora de uma, difficilmente lh'a farão despejar. É
sestro; não se tira dahi; ha muito que lhe callejou a vergonha. Agora,
se advertirmos no immenso numero de casas que occupa, umas de vez,
outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amavel
peregrina é o terror dos proprietarios. No nosso caso, houve quasi
um disturbio á porta do meu cerebro, porque a adventicia não queria
entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu.
Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sotão.
--Não, senhora, replicou a Razão, estou cançada de lhe ceder sotãos,
cançada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sotão á
sala de jantar, dahi á de visitas e ao resto.
--Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um
mysterio.
--Que mysterio?
--De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns
dez minutos.
A Razão poz-se a rir.
--Has de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a
mesma cousa...
E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fóra; depois
entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas supplicas; ainda
grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a lingua de
fóra, em ar de surriada, e foi andando... foi andando... Provavelmente
andará até á consummação dos seculos.
CAPITULO IX
Transição
E vejam agora com que destreza, com que fina arte faço eu a maior
transição deste livro. Vejam: o meu delirio começou em presença
de Virgilia; Virgilia foi o meu grão peccado da juventude; não ha
juventude sem meninice; meninice suppõe nascimento; e eis aqui como
chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci.
Viram? Nenhuma juntura apparente, nada que divirta a attenção pausada
do leitor; nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens
do methodo, sem a rigidez do methodo. Na verdade, era tempo. Que isto
de methodo, sendo, como é, uma cousa indispensavel, todavia é melhor
tel-o sem gravata nem suspensorios, mas um pouco á fresca e á solta,
como quem não se lhe dá da visinha fronteira, nem do inspector de
quarteirão. É como a eloquencia, que ha uma genuina e vibrante, de uma
arte natural e feiticeira, e outra tesa, engommada e chocha. Vamos ao
dia 20 de Outubro.
CAPITULO X
Naquelle dia...
Naquelle dia, a arvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci;
recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que
se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de
fidalgos. Não é impossivel que meu pae lhe ouvisse tal declaração;
creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratifical-a
com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o heroe da
nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais lhe
quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo official de infantaria,
achava-me um certo olhar de Bonaparte, cousa que meu pae não pôde ouvir
sem nauseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-me conego.
--Conego é o que elle ha de ser, e não digo mais por não parecer
orgulho; mas não me admiraria nada se Deus o destinasse á um bispado...
É verdade, um bispado; não é cousa impossivel. Que diz você, mano
Bento?
Meu pae respondia a todos que eu seria o que Deus quizesse; e alçava-me
ao ar, como se intentasse mostrar-me á cidade e ao mundo; perguntava a
todos se eu me parecia com elle, se era intelligente, bonito...
Digo essas cousas por alto, segundo as ouvi narrar annos depois; ignoro
a mór parte dos pormenores daquelle famoso dia. Sei que a visinhança
veiu ou mandou comprimentar o recem-nascido, e que durante as primeiras
semanas muitas foram as visitas em nossa casa. Não houve cadeirinha
que não trabalhasse; aventou-se muita casaca e muito calção; e se hão
conto os mimos, os beijos, as admirações, as bençãos, é porque, se os
contasse, não acabaria mais o capitulo, e é preciso acabal-o.
Item, não posso dizer nada do meu baptizado, porque nada me referiram
a tal respeito, a não ser que foi uma das mais galhardas festas do
anuo seguinte, 1806; baptizei-me na egreja de S. Domingos, uma terça
feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo padrinhos o coronel
Rodrigues de Mattos e sua senhora. Um e outro descendiam de velhas
familias do norte e honravam devéras o sangue que lhes corria nas
veias, outr'ora derramado na guerra contra Hollanda. Cuido que os nomes
de ambos foram das primeiras cousas que aprendi; e certamente os dizia
com muita graça, ou revelava algum talento precoce, porque não havia
pessoa extranha diante de quem me não obrigassem a recital-os.
--Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu padrinho.
--Meu padrinho? é o coronel Paulo Vaz Lobo Cezar de Andrade e Souza
Rodrigues de Mattos; minha madrinha é a Excellentissima Senhora D.
Maria Luiza de Macedo Rezende e Souza Rodrigues de Mattos.
--É muito esperto o seu menino, commentavam os ouvintes.
--Muito esperto, concordava meu pae; e os olhos babavam-se-lhe de
orgulho, e elle espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me longo
tempo, namorado, cheio de si.
Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo. Talvez
por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar ás cadeiras,
pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de páu.--Só só, nhonhô, só só,
dizia-me a mucama. E eu, attrahido pelo chocalho de lata, que minha mãe
agitava diante de mim, lá ia para a frente, cahe aqui, cahe acolá; e
andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando.
CAPITULO XI
O menino é pai do homen.
Cresci; e nisso é que a familia não interveiu; cresci naturalmente,
como crescem as magnolias e os gatos. Talvez os gatos são menos
matreiros, e, com certeza, as magnolias são menos inquietas do que eu
era na minha infancia. Um poeta dizia que o menino é pae do homem. Se
isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.
Desde os cinco annos merecera eu a alcunha de «menino diabo»; e
verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu
tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um
dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negára uma colhér do
doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o maleficio,
deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura,
fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragára o doce «por
pirraça»; e eu tinha apenas seis annos. Prudencio, um moleque de casa,
era o meu cavallo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um
cordel nos queixos, á guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma
varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e elle
obedecia,--algumas vezes gemendo,--mas obedecia sem dizer palavra,
ou, quando muito, um--«ai, nhonhô!»--ao que eu retorquia:--«Cala a
boca, besta!»--Esconder os chapéos das visitas, deitar rabos de papel
a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabelleiras, dar beliscões
nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram
mostras de um genio indocil, mas devo crer que eram tambem expressões
de um espirito robusto, porque meu pae tinha-me em grande admiração;
e se ás vezes me reprehendia, á vista de gente, fazia-o por simples
formalidade: em particular dava-me beijos.
Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a
quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéos; mas
opiniatico, egoista e algo contemptor dos homens, isso fui; se não
passei o tempo a esconder-lhes os chapéos, alguma vez lhes puxei pelo
rabicho das cabelleiras.
Outrosim, affeiçoei-me á contemplação da injustiça humana, inclinei-me
a attenual-a, a explical-a, a classifical-a por partes, a entendel-a,
não segundo um padrão rigido, mas ao sabor das circumstancias e
logares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns
preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me
governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espirito, que
a faz viver, para se tornar uma vã formula. De manhã, antes do mingáu,
e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como
eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma
grande maldade, e meu pae, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na
cara, e exclamava a rir: Ah! bregeiro! ah! bregeiro!
Sim, meu pae adorava-me, tinha-me esse amor sem merito, que é um
simples e forte impulso da carne; amor que a razão não contrasta
nem rége. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cerebro e muito
coração, assaz credula, sinceramente piedosa,--caseira, apezar de
bonita, e modesta, apezar de abastada; temente ás trovoadas e ao
marido. O marido era na terra o seu deus. Da collaboração dessas duas
creaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma cousa boa, era
no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio conego
fazia ás vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que elle me dava
mais liberdade do que ensino, e mais affeição do que emenda; mas meu
pae respondia que applicava na minha educação um systema inteiramente
superior ao systema usado; e por este modo, sem confundir o irmão,
illudia-se a si proprio.
Havia em minha mãe uma sombra de melancholia, que eu herdei, como
herdei de meu pae a fatuidade. Os aspectos da vida accrescentaram-lhe a
natural tendencia. Tinha coração de mais, uma sensibilidade melindrosa,
exigente, doentia.
De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo
extranho, o meio domestico. Vimos os paes; vejamos os tios. Um delles,
o João, era um homem de lingua solta, vida galante, conversa picaresca.
Desde os onze annos entrou a admittir-me ás anecdotas, reaes ou não,
eivadas todas de obscenidade ou immundicie. Não me respeitava a
adolescencia, como não respeitava a batina do irmão; com a differença
que este fugia logo que elle enveredava por assumpto escabroso. Eu não;
deixava-me estar, sem entender nada, a principio, depois entendendo, e
emfim achando-lhe graça. No fim de certo tempo, quem o procurava era
eu; e elle gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em
casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu
achal-o, no fundo da chacara, no lavadouro, a palestrar com as escravas
que batiam roupa; e ahi é que era um desfiar de anecdotas, de ditos,
de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguem podia ouvir, porque
o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga
no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do
tanque, outras fóra, inclinadas sobre as peças de roupa, a batel-as, a
ensaboal-as, a torcel-as, iam ouvindo e redarguindo ás pilherias do tio
João, e a commental-as de quando em quando com esta palavra:
--Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!
Bem differente era o tio conego. Esse tinha muita austeridade e
pureza; taes dotes, comtudo, não realçavam um espirito superior,
apenas compensavam um espirito mediocre. Não era homem que visse a
parte substancial da egreja; via o lado externo, a hierarchia, as
preeminencias, as sobrepelizes, as circumflexões. Vinha antes da
sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que
uma infracção dos mandamentos. Agora, a tantos annos de distancia,
não estou certo se elle poderia atinar facilmente com um trecho de
Tertuliano, ou expor, sem titubear, a historia do symbolo de Nicéa;
mas ninguem, nas festas cantadas, sabia melhor o numero e caso das
cortezias que se deviam ao officiante. Conego foi a unica ambição de
sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia
aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observancia das
regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuia algumas virtudes, em que
era exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as
impôr aos outros.
Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a
pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa differençava-se
grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia,
uns dous annos. Outros parentes e alguns intimos não merecem a pena
de ser citados; não tivemos uma vida commum, mas intermittente, com
grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio
domestico, e essa ahi fica indicada,--vulgaridade de caracteres, amor
das apparencias rutilantes, do arruido, frouxidão da vontade, dominio
do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta
flôr.
CAPITULO XII
Um episodio de 1814
Mas eu não quero passar adeante, sem contar summariamente um galante
episodio de 1814; tinha nove annos.
Napoleão, quando eu nasci, estava já em todo o explendor da gloria
e do poder; era imperador e grangeára inteiramente a admiração dos
homens. Meu pae, que á força de persuadir os outros da nossa nobreza,
acabara persuadindo-se a si proprio, nutria contra elle um odio
puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em nossa casa,
porque meu tio João, não sei se por espirito de classe e sympathia de
officio, perdoava no despota o que admirava no general, meu tio padre
era inflexivel contra o corso, os outros parentes dividiam-se; dahi as
controversias e as rusgas.
Chegando ao Rio de Janeiro a noticia da primeira quéda de Napoleão,
houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou
remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo publico, julgaram mais
decoroso o silencio; alguns foram além e bateram palmas. A população,
cordialmente alegre, não regateou demonstrações de affecto á real
familia; houve illuminações, salvas, _Te-Deum_, cortejo e acclamações.
Figurei nesses dias com um espadim novo, que meu padrinho me dera no
dia de Santo Antonio; e, francamente, interessava-me mais o espadim
do que a quéda de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse phenomeno. Nunca
mais deixei de pensar commigo que o nosso espadim é sempre maior do que
a espada de Napoleão. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era
vivo, li muita pagina rumorosa de grandes idéas e maiores palavras, mas
não sei porque, no fundo dos applausos que me arrancavam da boca, lá
echoava alguma vez este conceito de experimentado:
--Vae-te embora, tu só cuidas do espadim.
Não se contentou a minha familia em ter um quinhão anonymo no regozijo
publico; entendeu opportuno e indispensavel celebrar a destituição
do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruido das acclamações
chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou, quando menos, de seus
ministros. Dito e feito. Veiu abaixo toda a velha prataria, herdada do
meu avô Luiz Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras
da India; matou-se um capado; encommendaram-se ás madres da Ajuda as
compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas,
escadas, castiçaes, arandellas, as vastas mangas de vidro, todos os
apparelhos do luxo classico.
Dada a hora, achou*-se reunida uma sociedade selecta, o juiz de fóra,
tres ou quatro officiaes militares, alguns commerciantes e lettrados,
varios funccionarios da administração, uns com suas mulheres e filhas,
outros sem ellas, mas todos commungando no desejo de atolar a memoria
de Bonaparte no papo de um perú. Não era um jantar, mas um _Te-Deum_;
foi o que pouco mais ou menos disse um dos lettrados presentes, o
Dr. Villaça, glosador insigne, que accrescentou aos pratos de casa o
acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse hontem, lembra-me de o ver
erguer-se, com a sua longa cabelleira de rabicho, casaca de seda, uma
esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote,
e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois
tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo indice, que
apontava para o tecto; e, assim posto e composto, devolver o mote
glosado. Não fez uma glosa, mas tres; depois jurou aos seus deuses não
acabar mais. Pedia um mote, davam-lh'o, elle glosava-o promptamente,
e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto que uma das senhoras
presentes não pôde calar a sua grande admiração.
--A senhora diz isso, retorquia modestamente o Villaça, porque nunca
ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do século, em Lisboa. Aquillo sim!
que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e duas horas, no
botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas e bravos. Immenso
talento o do Bocage! Era o que me dizia, ha dias, a Sra. duqueza de
Cadaval...
E estas tres palavras ultimas, expressas com muita emphasis, produziram
em toda a assembléa um fremito de admiração e pasmo. Pois esse homem
tão dado, tão simples, além de pleitear com poetas, discreteava com
duquezas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contacto de tal homem, as
damas sentiam-se superfinas; os varões olhavam-n'o com respeito,
alguns com inveja, não raros com incredulidade. Elle, entretanto,
ia caminho, a accummular adjectivo sobre adjectivo, adverbio sobre
adverbio, a desfiar todas as rimas de _tyranno_ e de _usurpador._ Era
á sobremeza; ninguem já pensava em comer. No intervallo das glosas,
corria um borborinho alegre, um palavrear de estomagos satisfeitos;
os olhos, molles e humidos, ou vivos e calidos, espreguiçavam-se ou
saltitavam de uma ponta a outra da meza, atulhada de doces e fructas,
aqui o ananaz em fatias, alli o melão em talhadas, as compoteiras de
crystal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarello como
uma gemma,--ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo